OLIVIER DONNAT. LA TRANSMISSION DES PASSIONS CULTURELLES REVUE ENFANCES, FAMILES, GÉNÉRATIONS nº1, automne 2004. "Regards sur lês parents d'aujourd'hui".

Por HUSTANA MARIA VARGAS

        Sobre o autor: sociólogo francês, pesquisador do Departamento de Estudos e Prospectiva do Ministério da Cultura e da Comunicação, conduziu importantes trabalhos sobre práticas e consumo cultural entre os franceses, dentre eles Les Français face à la Culture. De l'exclusion à l'éclectisme (Paris: Éditions la Découverte, 1994). Suas pesquisas têm revelado tendências contraditórias quanto àquelas práticas e consumo, conjugando manutenção e mudança: as desigualdades sociais e geográficas face à cultura persistem fortemente ainda hoje e, por outro lado, as relações com a cultura modificaram-se radicalmente, por exemplo, em direção ao mundo audiovisual. Além disso, falam da pluralidade de modos de recepção e apropriação da cultura e da diversificação das modalidades de acesso a ela. Nesse sentido, mostram que não; se pode mais identificar esse acesso apenas com a freqüência a lugares culturais, e que as práticas amadoras de cultura crescem em todos os domínios, enquanto a cultura erudita se vê inserida em processos de hibridização e de legitimação de novas formas de expressão cultural.

        Neste artigo, o alvo principal é a transmissão das paixões culturais. A partir de uma pesquisa realizada em uma amostra de 5200 indivíduos com idade igual ou superior a 14 anos na França no ano de 2000, investigou as paixões culturais recebidas por eles quando crianças e aquelas transmitidas a seus filhos. Três grupos de idade foram definidos: de 14 a 28 anos, acima de 60 anos e um intermediário. Adotando o ponto de vista de beneficiário ou receptor e depois o de emissor1 , leva em conta a transmissão das paixões culturais sobre as duas gerações. Admitindo a pertinência das análises realizadas em termos de capital cultural a partir dos trabalhos de Pierre Bourdieu, pretende ultrapassar uma característica que entende como excessivamente globalizadora ou redutora neste autor, procurando identificar o que é relevante na transmissão de comportamentos ou de gostos culturais de uma geração a outra. Interessa saber, especialmente: quantos franceses estão implicados no fenômeno? Quais são as paixões mais freqüentes recebidas em herança no domínio da arte e da cultura? Que papéis desempenham os diferentes membros da família, professores e amigos nesta transmissão? Qual é a proporção dos que transmitem uma paixão cultural a seus filhos depois de haver recebido uma de seus pais?

        Na exposição destes resultados, analisa em primeiro lugar aspectos da recepção e depois, da transmissão. Cerca de um terço dos franceses declara ter recebido de seus familiares (pais, irmãos e avós), na infância, uma atividade de lazer ou uma paixão como herança. Para 9% destes, trata-se de uma paixão no domínio cultural (em ordem decrescente: música, leitura, artes plásticas, dança/teatro e lazeres científicos como aprendizado de língua estrangeira ou de informática, nomeadas atividades de conhecimento), e para os 21% restantes, em outros domínios (esporte, "bricolagem", jardinagem, costura).

        54% das pessoas que receberam uma paixão cultural a receberam de seu pai ou de sua mãe, percentual menor que no caso dos esportes, onde a influência de amigos e vizinhos é mais importante. De maneira geral, a importância do contexto familiar total na transmissão das paixões culturais fica patente se se considera que somente uma pessoa sobre cinco recebeu uma paixão de pessoa externa ao círculo familiar.

        Constatou-se que a proporção de pessoas que receberam uma paixão cultural aumenta na proporção em que a idade dos interrogados diminui. Nota-se, por outro lado, um caráter sexual em todas as gerações: as mulheres são mais numerosas que os homens na recepção de uma paixão no domínio da leitura (particularmente entre as mais jovens), enquanto que, para os homens, isso ocorre nas denominadas atividades de conhecimento.

        Com relação ao estilo da família, observou-se que o fato de receber uma paixão cultural é associado ao interesse que os pais possuem nos estudos e no percurso escolar de seus filhos. Verificou-se também que pessoas que receberam essa paixão pertencem a famílias onde o diálogo era freqüente: em família, falava-se de atualidade, de escola, do trabalho dos pais etc. Mas também são igualmente numerosos os casos de recepção em famílias onde conflitos e problemas são freqüentes (oposição política, religiosa ou sobre escolhas de vida entre familiares). Finalmente, o fato de haver recebido uma paixão cultural é fortemente ligado a elementos de transmissão do patrimônio.

        Sobre a transmissão da paixão cultural, constatou-se que a proporção de pessoas que transmitiram ou têm intenção de transmitir uma paixão cultural é superior àquela que recebeu uma paixão em herança. Dois terços de pais que afirmam não ter recebido paixão cultural, a transmitiram. Entre os que transmitiram ou têm intenção de transmitir, sobressaem os pais mais jovens, talvez como efeito "bola de neve": sendo mais jovens, receberam também quando crianças, mais paixões culturais que os pais mais velhos. No total, parece que a cultura constitui, juntamente com os esportes, o domínio onde o desejo de transmitir se desenvolveu nos últimos decênios entre aqueles que não receberam esta herança, e é aquele onde a transmissão intergeracional é mais fácil.

        Analisando em detalhe estes resultados, observa-se um reforço de fatores favorecendo a transmissão. Com efeito, é entre as categorias da população onde os receptores de paixão cultural são mais numerosos que se verifica mais transmissão. Assim, as mulheres e os diplomados no ensino superior, bem como pais solteiros ou divorciados e os parisienses são mais inclinados que a média a retransmitir uma paixão cultural quando a recebem como herança. Curiosamente, observou-se que pessoas que educaram sozinhas seus filhos são mais numerosas na transmissão de paixão sem ter recebido uma, notadamente entre as solteiras. Além disso, verificou-se que a presença de três séries de fatores, fortemente correlacionados, definem um contexto favorável à transmissão de paixões culturais. Os primeiros são ligados às condições gerais de socialização: o fato de viver num meio sociocultural favorecido cria uma proximidade com o mundo da arte e da cultura, facilitando a receptividade às solicitações ou oportunidades que se apresentam nesse domínio, mesmo quando não praticadas no espaço familiar. Em seguida, os efeitos ligados à aprendizagem precoce: o fato de haver descoberto as atividades culturais na infância aumenta as chances de desenvolver uma paixão. Por último, a transmissão pode se enraizar no valor do exemplo, mesmo quando a atividade concernente não foi praticada na infância: o fato de um familiar praticar regularmente uma atividade permite a "descoberta" de uma paixão por esta atividade mesmo na idade adulta.

        Concluindo, sublinha que o fato das gerações mais jovens serem duas vezes mais numerosas na recepção de uma paixão cultural e que dois terços de pais transmissores não tenham eles mesmos a recebido, sugere a difusão de um desejo de cultura. Ao mesmo tempo, mostra que se deve reconhecer que a cultura persiste como um lugar onde os mecanismos da reprodução funcionam com mais eficácia e onde as desigualdades mensuradas no nível dos estudos ou da origem social permanecem fortes. Ao lado da comprovação destes últimos resultados, de antemão esperados, parece que a relevância maior deste trabalho está em abordar o tema na perspectiva intergeracional a ponto de poder extrair tendências, e também por apontar detalhes do processo, tais como as categorias sociais e o contexto onde a recepção e a transmissão operam mais facilmente. Não menos revelantes são algumas surpresas, como a presença do conflito familiar como um dos fatores verificados na facilitação da recepção das paixões culturais.



1 Identificados pelas questões: "quando criança, algum familiar te fez descobrir uma atividade importante para sua vida, uma paixão?", "existe uma atividade que você goste em particular, uma paixão, que transmitiu a...? (aos pais cujos filhos tinham 18 anos ou mais)", "existe uma atividade que você goste particularmente, uma paixão, que você gostaria de transmitir a...? (aos pais cujos filhos tinham menos de 18)".